Barrabás - "A Casa dos Espíritos" (Allende)
"A Casa dos Espíritos", de Isabel Allende,
é um desses livros imperdíveis paridos
na ditadura maldita em seus países cujos escritores
foram capazes de transcender
e transformar sua dor e seu ódio em obras
de arte de vida eterna e sagrada.
Para mim esse livro é um livro sagrado,
ele é um baú de memórias de várias famílias chilenas
que nunca perderão a memória.
Eu já tinha lido ele anteriormente, mas faz muito tempo.
Ele é um dos 40 textos obrigatórios da disciplina
Representação, História e Memória Cultural,
e eu decidi digerir um pouco dos textos literários,
filosóficos e psicanalíticos que vou ter de ler
durante esses 6 meses aqui no blog,
se eu conseguir arrumar tempo para tudo o que
propus este semestre.
A parte que quero comentar primeiramente deste livro
(vou começar com uma colher de chá)
é o aparecimento do cãozinho Barrabás,
herança do Tio Marcos deixada para Clara,
criança clarividente e apaixonante, de 7 anos. Voilà:
"(...) Da sua última viagem, Marcos regressou num caixão. Tinha
morrido de uma misteriosa peste africana que o foi pondo
enrugado e amarelo como um pergaminho. Ao sentir-se doente
iniciou a viagem de volta, esperando que os cuidados da sua
irmã e a sabedoria do doutor Cuevas lhe tornassem a dar a
saúde e a juventude, mas não resistiu aos sessenta dias de
travessia de barco e, por alturas de Guaiaquil, morreu
consumido pela febre e delirando sobre mulheres perfumadas e
tesouros escondidos. O capitão do barco, um inglês de apelido
Longfellow, esteve a ponto de o lançar ao mar embrulhado numa
bandeira, mas Marcos tinha feito tantos amigos e apaixonado
tantas mulheres a bordo do transatlântico, apesar do seu
aspecto campesino e do seu delírio, que os passageiros o
impediram, e Longfellow teve de o armazenar, junto às
hortaliças do cozinheiro chinês, para o preservar do calor
e dos mosquitos do trópico, até que o carpinteiro de bordo
improvisasse um caixão. Em El Callao conseguiram um féretro
apropriado e alguns dias depois o capitão, furioso pelos
contratempos que aquele passageiro tinha causado à Companhia
de Navegação e a ele pessoalmente, descarregou-o sem
contemplações no cais, estranhando que ninguém aparecesse a
reclamá-lo nem a pagar as despesas extraordinárias. Mais tarde
soube que naquelas latitudes o correio não oferecia o mesmo
crédito que na sua longínqua Inglaterra e que os seus
telegramas se tinham evaporado no caminho. Felizmente para
Longfellow, apareceu um advogado da alfândega que conhecia a
família del Valle e que se ofereceu para tratar do assunto,
metendo Marcos e a sua complicada bagagem num carro de aluguer
e levando-o para a capital, para o único domicilio fixo que
dele se conhecia: a casa da irmã.
Para Clara esse teria sido um dos momentos mais dolorosos da
sua vida, se Barrabás não tivesse chegado misturado com os
instrumentos do tio. Ignorando a confusão que ia pelo pátio, o
seu instinto levou-a directamente ao canto onde tinham posto a
jaula. Dentro estava Barrabás. Era um montão de ossinhos
cobertos por pêlo de cor indefinida, cheio de peladas
infectas, um olho fechado e outro escorrendo remelas, imóvel
como um cadáver na sua própria porcaria. Apesar desta
aparência, a menina não teve dificuldade em identificá-lo:
-- Um cãozinho! -- exclamou.
Encarregou-se do animal, tirou-o da jaula, embalou-o contra o
peito e, com cuidados de missionária, conseguiu deitar-lhe
água no focinho inchado e seco. Ninguém se tinha preocupado em
alimentá-lo desde que o capitão Longfellow, que como todos os
ingleses tratava muito melhor os animais que os humanos, o
depositou no cais. Enquanto o cão esteve a bordo junto ao dono
moribundo, o capitão alimentou-o pela própria mão e passeou-o
pela coberta, dando-lhe todas as atenções que não dera a
Marcos, mas uma vez em terra firme foi tratado como parte da
bagagem. Clara tornou-se uma mãe para o animal, sem que
ninguém lhe disputasse esse privilégio duvidoso, conseguindo
reanimá-lo. Dois dias mais tarde, logo que se acalmou a
tempestade da chegada do cadáver e do enterro do tio Marcos,
Severo reparou no bicho peludo que a filha levava nos braços:
-- Que é isso? -- perguntou.
-- É o Barrabás -- disse Clara.
-- Entrega-o ao jardineiro para que o mate. Pode contagiar-nos
com alguma doença -- ordenou Severo.
Mas Clara tinha-o adoptado:
-- É meu, papá. Se mo tirar, juro-lhe que deixo de respirar e morro.
Ficou em casa. Em pouco tempo corria por todos os lados
devorando as franjas das cortinas, as almofadas e os pés dos
móveis. Saiu rapidamente da agonia e começou a crescer. Quando
se lhe deu banho, soube-se que era negro, de cabeça quadrada,
patas muito grandes e pêlo curto. A Ama sugeriu que lhe
cortassem a cauda para ficar como os cães finos, mas Clara
teve uma birra que acabou em ataque de asma e ninguém voltou a
falar no assunto. Barrabás ficou com o rabo inteiro, que com o
tempo chegou a ter o comprimento de um taco de golfe, com
movimentos incontroláveis que varriam as porcelanas das mesas
e tombavam candeeiros. Era de raça desconhecida. Não tinha
nada em comum com os cães que vagueavam pelas ruas e muito
menos com os animais de raça pura que algumas famílias
aristocráticas criavam. O veterinário não soube dizer qual era
a sua origem e Clara supôs que vinha da China porque grande
parte do conteúdo da bagagem do tio eram recordações desse
pais distante. Tinha uma capacidade ilimitada de crescimento.
Aos seis meses era do tamanho de uma ovelha e com um ano tinha
a proporção de um poldro. A família, desesperada, perguntava
até onde ele ia crescer, e começou-se a duvidar que fosse
realmente um cão. Especularam que podia tratar-se de um animal
exótico caçado pelo tio explorador nalguma região remota do
mundo e que, provavelmente, no seu estado primitivo era feroz.
Quando Nívea lhe observava as patas de crocodilo e os dentes
afiados, o seu coração de mãe estremecia ao pensar que o
animal podia arrancar a cabeça de um adulto com uma dentada e
com maior razão a de um dos seus filhos. Mas Barrabás não
mostrava ferocidade alguma, bem pelo contrário. Tinha
brincadeiras de gatinho. Dormia abraçado a Clara, dentro da
cama, com a cabeça no almofadão de penas, tapado até ao
pescoço porque tinha frio, mas depois, quando já não cabia na
cama, estendia-se no chão a seu lado, com o focinho de cavalo
apoiado na mão da menina. Nunca se ouviu ladrar nem tão pouco
rosnar. Era negro e silencioso como uma pantera, apreciava
o presunto e as compotas de fruta e, sempre que havia visitas
e se esqueciam de o fechar, entrava sorrateiro na sala de
jantar, dando volta à mesa para, com delicadeza, tirar dos
pratos os bocados preferidos sem que nenhum dos comensais se
atrevesse a impedi-lo. Apesar da sua mansidão de donzela,
Barrabás inspirava terror Os fornecedores fugiam
precipitadamente quando aparecia na rua e uma vez a sua
presença provocou pânico entre as mulheres que faziam bicha em
frente da carroça que distribuía o leite, espantando o cavalo
percherão que saiu disparado no meio de um quebrar de bilhas
de leite entornadas na calçada. Severo teve de pagar todos os
prejuízos e mandou amarrar o cão no pátio, mas Clara teve
outra crise nervosa e a decisão foi adiada por tempo indefinido.
A fantasia popular e o desconhecimento da sua raça
atribuíram a Barrabás características mitológicas. Constava
que continuava a crescer e que, se não fosse a brutalidade de
um carniceiro, que lhe pôs termo à existência, teria chegado
ao tamanho de um camelo. As pessoas acreditavam que era um
cruzamento de cão e égua, supunham que podiam aparecer-lhe
asas, cornos e um bafo sulfuroso de dragão, como os animais
que Rosa bordava no seu interminável manto. A Ama, farta de
apanhar porcelana partida e ouvir os boatos de que se
transformava em lobo nas noites de lua cheia, usou para ele o
mesmo sistema que para o papagaio, mas a superdose de óleo de
fígado de bacalhau não o matou, deu-lhe uma caganeira de
quatro dias que encheu a casa de alto a baixo e que ela mesma
teve de limpar. (...)"
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